Eu tinha um trapo,
Desde que me lembro
Esquecido a um canto,
Coçado, roto e usado
Encontrei-o um dia assim
Nem sujo, nem velho,
Unicamente trapo
Num canto esquecido de mim
Peguei nele, sem saber o que fazer
Vi-o por um lado, por outro,
Do avesso e de pernas para o ar,
Trapo tão trapo como só um trapo pode ser.
Dobrei-o, estiquei-o e voltei a dobrar,
Dobrei-o em dois, em quatro
Peguei-lhe por pontas e pelo meio
Atirei-o para um canto, depois de o amachucar
E aquele trapo, nada mais que um farrapo,
Amachucado então revelou
Uma natureza nova
Que tanto me encantou
Peguei nele, novamente, e com cuidado redobrado
Dobrei, enrolei, entalei
E daquele trapo, coçado, roto e usado
Nasceu uma boneca, companheira que havia sonhado
Os dias foram passando
E o encanto acabou
Porque a boneca, com quem havia sonhado,
Nem sequer uma palavra comigo trocou.
Da boneca fiz trapo e do trapo bola
Companhia mais animada,
Em casa, na rua, na escola
Deleite para mim e para quem com ela brincava
Muitos se aproximaram
E eu, contente, a bola lhes passava
Porque aquele trapo, coçado roto e usado,
Me trouxe a companhia que tanto desejava
Muitos passaram, vieram e quiseram jogar
Mas ao verem que era um trapo
Tudo o que tinha para dar
Poucos foram aqueles que não hesitaram em não ficar
Os que ficaram guardo-os comigo
E o trapo, voltou a ser trapo
Coçado, roto e usado,
Esquecido num canto de mim
Um dia, distraído,
Tropecei nele e, sem querer,
Mostrei-o a alguém que passava
E alguém me pediu para, de perto, o ver
Esse alguém olhou para mim
Olhou para o trapo
Olhou para mim e para o trapo
E adivinhou onde faltava aquele bocado
Com mãos de fada e palavras doces
Com pontos de carinho e linhas de sonho
Esse alguém deu ao trapo, coçado roto e usado,
Uma forma que nunca eu havia pensado
Porque o Meu trapo,
Coçado, roto, mal-tratado
Só quando chegou áquela mão
Voltou a ser Coração...
(Ricardo Silva, 2008)